Memória viva de 104 anos, benzedeira e parteira resiste ao tempo com fé e alegria. A festa será neste domingo!

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 por Rodivaldo Ribeiro - RDNews

Como suportar e entender a brevidade da vida quando ela muda de perspectiva e parece, aos 104 anos, muito mais longa do que diz toda a gente e, pior ainda, do que esperava o próprio ser humano cuja existência atravessou, então, mais de um século? É a pergunta que faz a si mesma praticamente todos os dias dona Francisca Correia da Costa, a Vó Chica, benzedeira, parteira, raizeira e anciã mais antiga de Chapada dos Guimarães.


Por Gilberto Leite - RDNews

Dona de um corpo completamente em forma, ela tem braços e pernas fortes, robustos o suficiente para passar a maior parte da entrevista (de quase duas horas, contando as benzeduras) em pé e ignorando solenemente os pedidos para que se sentasse.
Ao receber a equipe de reportagem, sentada na área da casa onde fica também sua sala de consultas espirituais (com uma placa explicando o horário de funcionamento e educadamente pedindo pra não haver insistência em pedidos de benzedura fora desse período), ela sorri, se levanta pronta e rapidamente e tem dificuldade para entender o nome do repórter.
Nossa intermediadora, dona Enir, pede para falarmos mais alto, pois é a única maneira dela ouvir. Mas Vó Chica não dá muitos ouvidos a ninguém, entra na sala de consulta, pede para que a sigamos. Lá, em uma mesa cheia de esculturas de santos, orixás e anjos, além de castiçais, ela começa a acender velas. Nas paredes, pinturas de pretos velhos, mais santos e anjos.

Gilberto Leite - RDNews

A pele negra exibe muito menos rugas do que se costuma esperar de alguém vivo já há tanto tempo. Exceto pela audição e a visão já não tão apurados, nada naquela mulher de pouco mais de 1,60m induz a pensar na idade que ela tem e que, de acordo com parentes e a própria, é ainda maior, pois no tempo dela, mulheres casadoiras com homens mais jovens (como era o marido dela), eram obrigadas a trocar de documento para que a esposa fosse declarada mais jovem.
"Por causa disso, a certidão de nascimento, de tanto não ser mais usada (eu passei a usar mais a de casamento), acabou sumindo', explica Vó Chica. Quando chega a vez do repórter, ela entrega uma oração impressa e começa a benzer. Após cerca de 10 minutos de orações em voz baixa, ela começa a desejar coisas boas para o benzido em voz alta, passa a vela sobre a cabeça em sinal da cruz, pede para 'Nossa Senhora e Jesus Cristo' auxiliarem no caminho.


Por Gilberto Leite - RDNews

Ela diz que já me esperava, pois havia sonhado que o encontro aconteceria, mas pede desculpas por não conseguir lembrar precisamente quando isso aconteceu. E explica que depois de tanto tempo de vida ela já não sabe direito o que é pressentimento em orações ou o que chega a ela em sonhos, 'mas sinto como se este momento já tivesse acontecido', afirma, em uma descrição bastante original do que se convencionou chamar déjà-vu.
O cérebro dela mantém as funções intactas e a capacidade de contar tudo com detalhes e uma voz mais firme do que de gente 40 anos mais nova que ela chega a assustar. A intermediária pergunta falando bem alto sobre a infância. Ela sorri, olha pra mim e descreve quando começou a sentir as primeiras manifestações da mediunidade. Era ainda bem pequena, 'acho que lá pelos nove, 10 anos'.
Como a mãe era benzedeira tão boa que formavam filas de espera na porta da casa, muitas vezes tinha gente que tinha de voltar no outro dia porque não dava tempo de atender e muitas eram crianças com os pais, Francisca começou a brincar de benzer com as últimas da fila.

Acontece que essas crianças passaram a não voltar, pois o motivo delas terem ido até lá simplesmente desaparecia. 'No começo fingia que era pra brincar de boneca, mas aproveitava que minha mãe estava ocupada e começava a benzer as crianças do fim da fila, de espinhela, arca caída, quebranto. E elas se curavam. Minha mãe não podia nem sonhar, senão me dava uma surra', conta, rindo ainda hoje da tranquinagem de quase um século atrás.
Tudo caminhava bem para ela, pois sentia-se útil e de certa forma tirando uma parte do fardo da mãe, já que a benzeção começava depois do dia na lavoura e claramente cansava dona Maria. Na cabeça da então menina, ela só estava ajudando, especialmente a curar as pessoas. Mas o outro lado do desenvolvimento espiritual, o preço de viver entre mundos, logo deu as caras na vida de Vó Chica.


Por Gilberto Leite - RDNews

Mesmo mantendo silêncio sobre seus dons espirituais -- 'não queria contar pra ninguém, de jeito nenhum, pra ter de trabalhar como eu via todos os outros fazendo? Queria distância' --, um dia o mundo invisível foi ter com ela. Durante a gira no terreiro, um preto velho pedia a presença de uma médium jovem, diferente das que ele já conhecia no lugar. Era do meio pro fim da gira.
'Todo mundo respondia pro caboclo que não tinha a bacura que ele falava. Esse subiu, desceu outro, mas ele repetiu sobre a bacura', conta. Uma vizinha, mais esperta, sabia se tratar de Francisca, e disse a ela, 'estão te procurando, Francisca'.
Ela tentou negar por algum tempo, até que o caboclo contou que a criança era um médium poderoso que andava benzendo e curando sem orientação adequada, mas fez a ressalva, diz dona Chica: 'Essa bacura não precisa de gira, porque nasceu com esse (o dom) desde o berço da mãe'.
Pedido atendido, apesar de todo o medo de Francisca, ela já foi levada para perto dos que trabalhavam. Sua vontade de dar somente uma volta nos trabalhos, entre os que ajudavam, foi seguida. E foi o suficiente para os olhos dela se abrirem pra nunca mais fechar. 'Eu vi tudo que era bom, tudo que era bonito. Um altar muito bem preparado, muito bem iluminado, com muitas imagens'. Os espíritos falaram pra ela, 'esse é o seu'. Foi assim que Francisca, até hoje não alfabetizada, foi ensinada a escrever os pontos no chão.


Por Gilberto Leite - RDNews

'Abaixa um é um ponto, mais tarde este sobe, é outro ponto. Eu risquei tudo certinho, foi uma alegria só. Todos sapateavam. Acabei ajudando, virei ajudante, queriam que eu trabalhasse em casa, pra dar força pros outros, mas eu falei pra eles que isso é de muita responsabilidade. E não pode trabalhar com gente que não concentra, não acredita. Esse é que faz baixar trevoso'.

Sem muito esforço, ela faz uma advertência aos charlatães, lembrando de um caso daqueles tempos: o de um homem que se dizia médium, filho de santo, mas só queria atender moças novas e bonitas. Até o dia em que um 'trevoso', nas palavras dela, decidiu ir ter com ele. Incorporado, o homem viu-se cheio de fúria contra a menina que o tinha desmascarado só por ter tanta fé, mesmo sem nenhum preparo conhecido nesta terra.
'Foi um sacrifício fazer ele ir embora, ele rosnava, vinha pra cima de mim, pedia sangue, dizia que estava mandado, pago e precisava buscar um. Ele comia vela acesa. Tinha muito medo, pensava que se ele me batesse eu iria morrer lá, sozinha'. Mas isso obviamente não aconteceu, ela afirma ter tudo dado certo somente com a força da oração, a lembrança do nome de Deus e os pedidos ao Caboclo de Flecha e ao Caboclo Jesuíta, o das Sete Encruzilhadas, personagens os quais ela até então sequer havia ouvido falar.


Por Gilberto Leite - RDNews

Mas o chamado foi entendido e desse dia em diante ela passou a ajudar como parteira e a fazer remédios de raizeiras, ofícios que ela exerceu por mais de 75 anos, a considerar ter ela, nesse tempo, apenas 16. A força nos braços suficiente para 'aparar as crianças', como ela descreve, a abandonou 'por volta dos 80'. Foi embora junto com a chegada dos primeiros problemas de visão.
E é aí que ela se lembra do paradoxo do começo deste texto, ao dizer que já não sabe mais se ajudou mais gente a vir a este mundo ou a dele se despedir. 'Tanta, tanta, tanta dgente quieu aparei e depois tanta, tanta dgente que ajudei a enterrá, quieu, sinceramente, djá não sei mash o que quê Deus qué comigo, em cima desta Terra', diz, os olhos cheios de lágrimas, a voz a falhar. Ela finalmente atende o insistente pedido para que se sentasse. Ainda emocionada, lembra que em poucos anos perdeu sogro, sogra, irmãos e marido.

Lembra que ninguém da família dela, além da mãe, tinha esses dons, premonições. Confessa ter se perguntado a vida toda porque fora escolhida, descreve a angústia de todos os anos já atravessados, pois quanto mais envelhece, mais se recorda, mais descobre, ainda que já não mais deseje isso, como fora um dia nas brincadeiras da infância e como acontece, aliás, com a suma maioria dos elevados, reis, rainhas e profetas.
'Mas num recramo, porque sô filiz, sô forte. Tenho saúde; num é mais a saúde que eu tinha, mas tô de pé'.


Por Gilberto Leite - RDNews

É hora de desligar o gravador do celular e pedir uma bênção de despedida. Ela chega junto com um abraço sincero e um beijo afetuoso. Ao chegar à porta, onde já há pelo menos cinco pessoas esperando para serem benzidas, ela repara a chegada do pôr-do-sol e sublinha a beleza deste, mesmo tendo perdido 'faz hora' a conta de quantos outros já viu.